O carro e a Guerra: Quem ganhou, quem perdeu?

As guerras sempre foram palcos para o desenvolvimento tecnológico. Primeiro, para o mal à guisa de ataque ou de defesa; depois, para o bem, sob o pretexto de atender o mercado e, muitas vezes, o esforço de reconstrução. A I Guerra viu coisas surpreendentes como os soldados franceses dirigindo-se de táxi ao campo de batalha. Até então, a mecanização sequer era considerada no meio militar.

Foi Louis Renault que projetou e construiu os primeiros blindados, logo copiados pelos ingleses e, somente quando a guerra estava por acabar, pelos alemães, que dedicaram sua indústria automobilística à logística, especialmente, de feridos, posto que ambulâncias puxadas a cavalo já existiam desde a guerra Franco-Prussiana. Basta ler “Adeus às Armas” de Ernest Hemingway, que foi motorista de ambulância entre 1916 e 1918, para ter uma ideia da mecanização de então.

Os blindados ingleses foram rapidamente copiados de Louis Renault (Foto: reprodução/Pinterest)

Os automóveis de transporte de tropas sequer foram empregados na I Guerra. Os americanos, por sua vez, tiveram o primeiro contato com o uso militar de veículos motorizados em 1917, ao chegar à Grã-Bretanha, mas só vieram a se preocupar com a mecanização massiva no final da década seguinte. Naquele conflito, a Rússia nem pensava em motorização, posto que foi sua entrada na guerra que acelerou a queda da monarquia e a criação da União Soviética. Quando muito, usaram caminhões, especialmente da Fiat, como o que transportou os cadáveres da família Romanov para a tentativa de sumiço de seus corpos.

Os russos, por sua vez, utilizavam basicamente caminhões, a exemplo do Fiat da foto, que transportou os cadáveres da família Romanov (Foto: reprodução/slideserve.com)

Enquanto a Guerra Civil Espanhola serviu de laboratório para blindados russos, pelo lado dos revoltosos, e alemães, pelo lado do exército franquista, os investidores na indústria bélica enriqueceram a despeito da crise de 1929. Isso aproximou Louis Renault de Hitler, a quem visitou em 1935, promovendo colaboração tecnológica para o desenvolvimento de tanques franceses e alemães.

A França, no início da II Guerra, tinha até mais blindados que a Alemanha e, se não os usou decisivamente, foi por conta da doutrina militar tradicionalista. Ela punha os blindados como apoio à infantaria enquanto a cavalaria ligeira continuava a ser a ponta de lança. Opostamente, na BlitzKrieg, os veículos motorizados abriam caminho para os infantes avançarem.

Só que os infantes teriam de ser postos no teatro de operações na mesma velocidade com que os blindados avançavam, necessitando, portanto, de carros de transporte de tropas com a mesma eficiência e capacidade semelhante de transpor obstáculos, muitas vezes causados pelos blindados que os antecediam. Foi então que as alianças industriais e as políticas mais se distanciaram. Ford, por exemplo, forneceu à Alemanha 1.500 carros de transporte de tropas, sem os quais, o corredor Polonês jamais teria existido.

A Ford, durante a Segunda Grande Guerra, forneceu cerca de 1.500 caminhões militares à Alemanha (Foto: reprodução/panzerserra.blogspot.com)

Declaradamente antissemita, Louis Renault pôs sua fábrica à serviço da república de Vichi, sendo acusado de colaboracionismo com os nazistas, pelo que foi preso, morrendo antes de promulgada a sentença. Suas indústrias foram confiscadas e seu nome só viria a ser reabilitado trinta anos depois.

A Ford e a GM, com suas sucursais alemãs, apesar de terem amealhado verdadeiras fortunas durante o nazismo, até lançando mão de trabalho escravo, não sofreram punição alguma no julgamento de Nuremberg. Afinal, os Estados Unidos tinham ganho a guerra e não votaria para munirem-se seus mais bem sucedidos industriais. Henry Ford apoiava o nazismo por horror ao comunismo, enquanto Alfred P. Sloan, presidente da GM, era publicamente defensor dos valores do regime alemão.

Na Alemanha, BMW e o grupo Daimler-Benz usaram, juntas, pelo menos 65 mil trabalhadores escravos e a família Quandt sequer ficou conhecida por controlar acionariamente ambas as empresas. Somente Ferdinand Porsche foi punido de fato, talvez por não ter negócios tradicionais com o ocidente.

A família Quandt continua sendo dona da BMW e grande acionista de todas as empresas de automóveis e autopeças da Alemanha, havendo mesmo quem a considere como a família dona do país. Projetos de motores para aviões e torpedos saíam das pranchetas dos engenheiros das empresas controladas por essa família, mas eram plantas industriais americanas sediadas em países dominados pelos nazistas que os produziam em larga escala.

Não nos esqueçamos de que a indústria automobilística japonesa nasceu de modelos americanos produzidos sob licença, incluindo os veículos militares empregados na frente do Pacífico. Seu uso ocorreu em menor escala, pois tratou-se de uma guerra eminentemente naval e insular, mesmo assim, os royalties pagos à Ford e à GM não foram nada desprezíveis.

Os veículos bélicos japoneses eram, inicialmente, Ford’s e GM’s produzidos sob licença. Depois passaram a desenvolver seus próprios veículos, como esse Isuzu Type 94 (Foto: reprodução/militarytrader.com)

Tirando Louis Renault e Ferdinand Porsche, os industriais, locais ou internacionais, envolvidos no inferno em que o mundo se transformou entre 1939 e 1945, saíram da guerra muito mais ricos do que quando entraram, e não obstante, são aplaudidos pelo que produziram e ainda produzem.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.