Indústria de automóveis, do arquétipo à criação de moda

Há algumas quinzenas, escrevi uma matéria sobre os paradigmas e a confusão conceitual que o termo trouxe aos debates acerca da evolução do pensamento científico. Quando se fala em quebrar um paradigma, por exemplo, está-se imaginando que ele seja uma prática, que se passou a chamar do mainstream, que se poderia traduzir perfeitamente por voz corrente.

Paradigmas não se quebram, esgotam-se e, enquanto ele ainda não atingiu a saturação, pode ser constituinte da voz corrente. Também se tem usado o termo como aquilo que dita as normas, que deve ser seguido, copiado, admirado. O termo correto para isso é arquétipo. Sempre se tomou a indústria de automóveis, como o arquétipo da boa administração. Será que isso é verdade?

Apesar do mérito da criação da linha de produção ser de Henry Ford, alguns frigoríficos e até a Peugeot Cycles já utilizava o método (Foto: Ford/divulgação)

Para começar, atribuiu-se a Henry Ford a criação da linha de montagem, coisa que ele copiou dos frigoríficos de Chicago, para onde ia o gado do país inteiro para ser abatido e desossado, o que, mais tarde, veio a ocorrer com frangos, porcos ou toda a indústria de proteína animal. Na verdade, a Peugeot já usava o método desde quando só produzia bicicletas.

O fato é que linhas de montagem passaram a ser a voz corrente em toda a indústria, acreditando-se ser uma forma de atingir a perfeição, via cópia dos métodos usados pela indústria de automóveis. Mais tarde, isso veio a ser contraposto pelo método sueco, em que a mesma equipe acompanhava o automóvel, montado sobre carrinhos, do início ao fim de seu processo de produção.

Usando os ditames dos americanos Armand Feigenbaum (1922 – 2014), William Deming (1900 – 1993) e do japonês Kaoru Ishikawa (1915 – 1989) introduziu, à indústria japonesa, os métodos de controle de qualidade, cujo conjunto era conhecido como CWQC (Company Wide Quality Control), que, vieram a ser chamados, como filosofia , de Toyotismo.

Dois americanos e um japonês foram os responsáveis pelo método conhecido como Toyotismo (Foto: Toyota/divulgação)

Com os métodos administrativos não poderia ser diferente. Em 1984, a GM adquiriu a EDS (Electronic Data Services), criada por Ross Perot em 1962, para internalizar o desenvolvimento de sistemas computacionais, seja para a produção, seja para os projetos. Da mesma forma, ainda nos anos 1980, o grupo Daimler-Benz criou a Debis, que, no Brasil, chamou-se Debis-Humaitá.

A VW, por sua vez, criou a Gedas que, no Brasil, funcionava em S. Bernardo do Campo, endereço que ainda aparece na internet, muito embora ela já não exista. Fora desse movimento de internalização do desenvolvimento de sistema ficou a Ford, que manteve seu legado, escrito em Cobol, desde os anos 1950.

Na contramão das concorrentes, a Ford ainda utilizava o Cobol, originário dos anos 50 (Foto: reprodução)

Nos anos 1990, com a proximidade da mudança de milênio, essas estruturas foram irremediavelmente abaladas. É que, como o legado vinha de um tempo em que o armazenamento de dados era a parte mais cara da informática, para economizar bites, as datas eram gravadas com apenas seis algarismos, desprezando-se o milênio. Isso não valeria mais a partir de 1º de janeiro de 2000, quando seria mandatório usarem-se oito casas para armazenar datas. Foi a febre de implantação de um sistema chamado R/3 da alemã SAP. Isso ficou conhecido com “bug do ano 2000”, “Bug do milênio”, ou, na gíria dos informáticos, Y2K.

A SAP atribuía-se o status de arquétipo dos sistemas informatizados. O lema era: “Se você não consegue implantar o R/3, errada está sua empresa”. Por causa disso, a Gedas, a Debis-Humaitá e a EDS transformaram-se em implantadoras da SAP. O mito era tão forte que os profissionais da Debis-Humaitá diziam que tinham de introduzir pequenas falhas propositais para manter os funcionários atentos ao trabalho.

Em outros casos, os departamentos de auditoria de sistemas foram simplesmente extintos, na crença de que o R/3 fosse perfeito. Isso acarretou a perda de mão de obra extensivamente treinada que, quando se descobriu que o mito não passava disso mesmo, foi preciso partir do zero, gerando perda de competitividade até comprometedora para a indústria ocidental de automóveis.

Mais tarde, essas empresas dedicadas foram absorvidas. A EDS desligou-se da GM em 1996 e, em 2008, foi vendida para a Hiled Pakard e, a partir de 2009, tornou-se a HP Enterprise Systems. A Debis-Humaitá foi absorvida pela Deutch Telecom, quando o controle acionário dessa última foi adquirido pelo grupo Daimler-Chrysler, no ano 2000, tornando-se a T-Systems. Em 2007, a Gedas seguiu o mesmo caminho, sendo absorvida pela T-Systems, muito embora mantenha seu endereço nas dependências da VW em S. Bernardo do Campo até hoje. Mais uma vez, a Ford ficou fora do movimento, mesmo tendo implantado o SAP para uso no que não dependia de legado.

O arquétipo atual é o método coreano, em que se misturam o Toyotismo e o sistema sueco, sem abrir mão da produção em série. Trata-se de uma organização por processos, em que um coordenador de processo o acompanha do primeiro ao último passo, evitando gargalos e garantindo que tudo corre pelo melhor, além de estar apto a reportar falhas e sugerir soluções. O fato é que, apesar de tudo, a indústria de automóveis continua criando moda.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.