Importação de carros elétricos: de novo a China é a culpada? (parte 2)

Foto de capa: Focke Strangmann/AFP

Tudo o que se faz na ciência parte de premissas. Quem não se lembra da expressão “em condições normais de temperatura e pressão”? Diz-se também que, no vácuo, todos os corpos que caem o fazem respeitando a aceleração da gravidade. Na prática, não é verdade, pois o vácuo total não se encontra na natureza. Assim, a aceleração de um corpo que cai depende de duas outras variáveis, como seu peso específico e seu arrasto aerodinâmico. Esta última variável é função da forma, da altitude, da temperatura e variações meteorológicas.  

O arrasto aerodinâmico, mesmo dos carros, é uma das variáveis para determinar a aceleração de um corpo que cai (Foto: Mercedes-Benz/divulgação)

Resumindo, a aceleração de um corpo que cai depende de uma cadeia crescente de variáveis, a começar pela aceleração da gravidade, terminando por um sem-número de outras, a cujo controle estamos longe de ter acesso. Ocorre que o cientista pode se valer de uma variável secundária para obter um resultado tecnológico desejado. O paraquedas é um exemplo disso. A ideia é usar o arrasto aerodinâmico de tal forma que ele se iguale à aceleração e a velocidade atingida seja a desejada e permaneça constante. 

Há quem diga que a contabilidade seja uma ciência social aplicada. Discordo. Penso que ela seja a adoção de uma tecnologia que se baseia no mecanismo de débitos e créditos, também conhecido por método das partidas dobradas. Ele diz que tudo tenha uma origem (crédito) e um destino (débito) e é a partir disso que, além de contar a história da empresa, a contabilidade permite estimar custos, o que ajuda a atribuir preços. É aí que entram as premissas. A contabilidade define custo como sendo o esforço em produzir. Em outras palavras, quando uma empresa compra matéria-prima e constitui seus estoques está investindo; ao retirá-la do estoque e enviar para a linha de produção para que se incorpore num produto final, é custo.  

Para a contabilidade, o custo é o esforço para produzir. Logo, a aquisição de nova matéria-prima é tratado como investimento, e não despesa (Foto: Ford/divulgação)

A ela se agregam a mão de obra, a energia elétrica, o desgaste das máquinas e equipamentos e todos os custos industriais. Estes podem ou não variar consoante a quantidade produzida, e quando não variam, são custos fixo, caso contrário, variáveis obviamente. O preço há de ser a soma dos custos fixos e variáveis, acrescidos da margem. A margem pode ser mais ou menos próxima da desejada pelo produtor conforme ele tenha maior ou menor poder de monopólio, ou seja, seu mercado seja mais ou menos cativo.  

E não é só o preço do produto em si: tem mão de obra, energia elétrica, desgaste dos equipamentos da linha, dentre outras despesas fabris (Foto: VW/divulgação)

É nesse ponto em que entra uma questão interessante: quem vai pagar pelos custos fixos? A premissa mais básica – e bastante verossímil – é que o mercado interno seja mais cativo do que o externo. No caso do mercado de automóveis, ao se decidir por exportar, seu produto passa a concorrer com todos os que existem no mundo. Se vendidos internamente, eles só concorrem com as marcas instaladas no país. Assim, o produtor pode impor margem maior interna do que externamente. Resumindo, os custos fixos serão remunerados internamente, enquanto os carros exportados serão vendidos a preço marginal, em que se computam somente os custos variáveis e a margem desprovida da remuneração de outros custos computados anteriormente.  

Os economistas Eli Heckscher (1879 – 1952) e Bertil Ohlin (1885 – 1974) montaram uma teoria de comércio exterior, conhecida como “Heckscher-Ohlin”, em que os preços pagos internamente tendem a ser maiores do que os pagos pelo mesmo produto, quando importados. Resumindo, os produtores fazem com que os consumidores internos subsidiem as exportações na medida em que eles paguem pelos custos fixos, isentando os importadores. 

A Fiat Strada nacional é um dos carros que chega no exterior custando menos: na Colômbia, por exemplo, seu preço é mais de 30% menor (Foto: Lucca Mendonça)

Se somarmos os subsídios estatais analisados no capítulo anterior (leia clicando aqui) e os ocasionados pelas premissas empregadas à determinação de preços, torna-se fácil crer que um carro fabricado aqui possa chegar ao seu destino no exterior por preços inferiores à metade dos praticados internamente. O mesmo se pode dizer do preço líquido que pagamos por um carro importado. É justamente por causa desses subsídios que todos os países impõem impostos de importação, excetuando acordos comerciais que prevejam reciprocidade. É o que acontece no Mercosul e no acordo bilateral com o México.  

Nesse caso, ao importarmos um carro mexicano ou argentino, estamos ajudando a diluir seus custos indiretos, coisa que não acontece quando importamos um carro elétrico chinês. Em resumo, nossos consumidores beneficiam-se dos subsídios estatais e de política de preços praticados pelas empresas chinesas, tenham elas nomes aborígenes como BYD ou GWM, sejam marcas ocidentais com produtos feitos na china, como Volvo. 

Ocorre que o mercado brasileiro está acostumado a se regozijar por comprar carros europeus e americanos sem os subsídios que eles mesmos praticam ao exportar para países mais exigentes. Pela primeira vez, vemos empresas competirem pelo nosso mercado, o que causa espanto. Até então, encarávamos a vinda de uma nova marca para cá como uma benemerência do exportador. A entrada dos produtos chineses, acusados de subsidiados, não faz outra coisa que pôr o Brasil em pé de igualdade com o resto do mundo no que tange à importação.  

Impostos a parte, novas marcas e produtos chineses disputando o nosso mercado tem seu lado bom (Foto: Seres/divulgação)

Se essas novas marcas vierem a produzir aqui, é porque almejam disputar nosso mercado, e que sejam bem-vindas. Só esperamos que não adquiram os velhos vícios das já instaladas aqui, como aconteceu com as coreanas. 

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem.

Luiz Alberto: pré-candidato a vereador pelo PT de SP
Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.