Fusca Pé-de-Boi, DKW Pracinha, Simca Profissional e Willys Teimoso: Verdadeiros atestados de pobreza

Como sempre foi, o mercado brasileiro de automóveis é uma montanha russa, cheio de “sobe e desce”. Tudo depende de como a economia caminha. Lá pelos idos de 1964, logo que o governo militar assumiu o comando do país, as vendas de nossa indústria de carros despencaram, e a ajuda do governo federal era fundamental para que se mantivessem os empregos e a produção dentro das fábricas de automóveis.

Nesse mesmo ano, mais para o final, foi criado um programa para acelerar as vendas de nossos carros, e o governo federal da época destinou uma verba, através da Caixa Econômica Federal, com subsídios nos juros e correção monetária, para que a população adquirisse carros 0 km. Mas havia um senão neste programa: Os tais carros deveriam ser absolutamente básicos, e a indústria automotiva fazia a sua parte criando veículos bem mais baratos, ideais para entrarem no programa do governo.

Assim, todas as marcas que tinham parte industrial no Brasil se apressaram para criar verdadeiros monstrengos, carros de sua linha de produção normal subtraídos de tudo aquilo que pudesse gerar custo e fosse dispensável para que o carro se locomovesse. Opções de cores? Normalmente duas ou três, e sempre aquelas com a tinta mais barata possível. Frisos e detalhes estéticos? Nenhum, pois eles só serviam de enfeite, assim como os cromados, que eram puro luxo dispensável.

Os carros perdiam o máximo de equipamentos possível (Foto: reprodução/Pinterest)

Por dentro, a mesma receita: Revestimento de bancos? Só aquele que permitiam à motorista e passageiros se sentarem, sem conforto. O mesmo pode ser dito de outros detalhes como tampa de porta-luvas, instrumentos de bordo adicionais, acabamentos internos, forração de porta-malas, entre outros. Tudo era luxo, então tudo caía fora. Essas alterações fizeram do Fusca 1200, Vemaguet, Chambord e Gordini carros horrorosos, batizados com nomes ainda piores: Pé-de-Boi, Pracinha, Profissional e Teimoso, respectivamente.

A proposta era a de que o indivíduo comprasse o tal modelo básico (ou praticamente incompleto) com o incentivo do governo, e aos poucos fosse comprando o que faltava. No final, depois de um tempo e mais dinheiro gasto com equipamentos, tinha-se o modelo comum, “completo”. Claro que até nos dias atuais, ninguém se interessa em comprar um carro pelado e feio, em que pese o fato dele ser 0 km.

O Fusca Pé-de-Boi conseguia ser tenebroso até no nome (Foto: VW/divulgação)

Apesar dos subsídios nos juros e no longo prazo de pagamento dado pela Caixa Econômica Federal, poucos foram os consumidores que se interessaram em adquirir esses carros baratos e completamente despojados. Se o objetivo do programa era fomentar a venda de carros 0 km, isso de fato não aconteceu. Pelo menos não do jeito que esperavam.

Devemos lembrar que os carros não são apenas um meio de locomoção, mas também um status em nossa sociedade. Aqueles que compravam um automóvel destes pelado por questões de economia, estavam dando à sociedade e a si próprio uma espécie de “atestado de pobreza”. Ninguém queria ser apontado na rua como aquele que só teve dinheiro pra comprar o carro que faltava peças. O consumidor da época preferia adquirir um carro usado com alguns anos, mas completo, bonito e cromado.

Fusca Pé-de-Boi

A vocação do carrinho, segundo a própria marca, era para o uso rural (Foto: VW/divulgação)

O besouro da VW perdia frisos, cromados, emblemas, e era oferecido em duas cores (cinza claro e azul claro, sempre com pintura sólida). Nos parachoques, apenas a lâmina com pintura branca, sem os adornos de cano que eram tradicionais. As calotas existiam, mas também eram brancas, assim como o contorno dos faróis. Dentro da cabine, as laterais das portas eram simples chapas de Eucatex, com o trinco e o levantador manual do vidro, e os bancos tinham armação tubular de metal com uma espécie de tecido envolto na estrutura, sem molas ou muita espuma. Tudo no formato “menos é mais”.

Por dentro, quase nada (Foto: Cléber Bonato/revista Quatro Rodas)

A instrumentação consistia apenas no velocímetro. Marcador de combustível? Também foi retirado, e o motorista tinha no porta-malas uma régua que deveria ser colocada no bocal do tanque pra medir a quantidade de combustível que tinha lá. Indicadores de direção, as famosas setas ou piscas, não existiam. Se fosse virar à direita ou esquerda, a indicação era feita com a mão pelo próprio motorista. Ele foi, inclusive, o carro de uso civil mais despojado já fabricado pela VW em toda sua história mundial. Uma temeridade!

DKW Pracinha

Pracinha, baseado na Vemaguet, tinha esse nome em referência aos carros de praça, ou táxis (Foto: DKW/divulgação)

O DKW Pracinha era oferecido apenas na versão perua, pois dessa forma se economizavam as portas traseiras do modelo sedan. Aparentemente, o carro não era tão despojado quanto o Fusca, pois já contava com retrovisor externo, os parachoques eram pintados na cor da carroceria, e as calotas tinham uma discutível coloração preta. Mas no interior, os bancos já tinham molas, as laterais de porta eram de melhor acabamento e por aí vai. Havia também duas opções de cores: bege e azul claro.

A Pracinha, nome que se referia aos táxis, ou “carros de praça”, pecava em aspectos técnicos: Do modelo comum eram retirados a roda-livre (que permitia que o veículo se comportasse como se estivesse em ponto-morto nas desacelerações, para economizar combustível), e também o misturador Lubrimat (que misturava a gasolina e óleo lubrificante de forma automática nos motores dois-tempos, como era o do DKW).

Faltavam coisas importantes na parte mecânica, mas em compensação seu interior era menos inacabado (Foto: reprodução/Clássicos Premium)

Sem esses itens, o carro perdia muito de suas qualidades técnicas, e ainda obrigava ao motorista abastecer com gasolina e óleo em uma proporção correta, sob o risco de seu motor travar caso houvesse erro nos cálculos dos litros de combustível para a quantidade de lubrificante. Trabalho mecânico que deveria ser feito pelo próprio motorista.

Simca Profissional

Outro que tinha nome em referência aos carros de táxi: Simca Profissional (Foto: Simca/divulgação)

Dos modelos simplificados oferecidos em nosso mercado, o Simca Profissional foi o menos afetado. Mesmo assim, possuía pontos esteticamente discutíveis, como os detalhes cromados que se tornavam cinzas ou pretos, dando um aspecto pesado ao design do carro. Por dentro, chamava a atenção os bancos inteiriços feitos em plástico e revestidos com tecido liso, e as forrações de portas feitas em uma espécie de papelão reforçado e pintado.

O Profissional também mantia apenas o essencial para andar e ser conduzido (Foto: Simca/divulgação)

A versão Profissional, que também se referia aos táxis, já havia sido lançada em 1963, mas com o nome de Alvorada. O propósito era o mesmo: Um carro básico e destinado aos motoristas de praça, mas mantinham-se alguns detalhes cromados pela carroceria, e o interior era mais caprichado, contando inclusive com bancos espumados.

O Profissional…sendo profissional (Foto: reprodução/maxicar.com.br)

Mas a marca de origem francesa se superou com o Profissional, onde foi retirado até a tampa do porta-luvas, espaço destinado à um rádio, revestimentos internos do porta-malas (que era “na lata”) e outros detalhes julgados desnecessários. Um carro espartano ao extremo.

Willys Teimoso

Mais pobre dentre o universo dos pobres: Willys Teimoso (Foto: reprodução/Pinterest)

No Teimoso a Willys caprichou. Tirou tudo o que podia tirar, e até o que não podia. Já imaginaram um carro que, para economizar, não tinha nem as duas lanternas traseiras? Pois no Teimoso era exatamente assim: Ele não tinha nenhuma lanterna, apenas uma pequena luz vermelha no centro da tampa do porta-malas. Ela servia como iluminadora da placa de licença, lanterna de posição e luz de freio.

A luz de seta? Nem o lugar da lâmpada, nem os comandos internos. A sinalização era por conta da mão do motorista, muito incômodo, principalmente nos dias de chuva. Da mesma forma, a luz de posição dianteira, ou lanterna, não estava disponível: Ou era o farol aceso, ou nada. Além disso, calotas, polainas dos parachoques, retrovisor externos e qualquer glamour da carroceria também era suprimido. Ao menos existiam três opções de pintura, sendo duas delas “exclusivas” dentro do universo dos carros despojados da época: Cinza, preto e marrom.

Bancos? Na realidade, eram estruturas de ferro com almofadas no assento e encosto (Foto: Willys/divulgação)

Por dentro, ainda mais economias, afinal os bancos eram apenas uma armação metálica com almofadas amarradas no assento e encosto, as laterais de porta eram chapas lisas, sem detalhes, o porta-malas também perdia seus acabamentos e ele não possuía nem mesmo o forro de teto. Imaginem o barulho das chuvas fortes caindo no teto do carrinho, e o quanto aquilo esquentava nos dias de sol quente. Mais parecia um carro de uso militar, tamanho o nível de despojamento, pobreza de equipamentos e acabamentos ausentes.

Curiosidade: Foto com um Teimoso e todos os equipamentos que lhe faltavam, tirada para ilustrar um teste da revista Quatro Rodas da época (Foto: reprodução/revista Quatro Rodas)

Examinando tudo isso, fica fácil entender o motivo do tal programa de incentivos do governo não ter dado certo. Ninguém queria esses carros feios e inacabados, feitos exclusivamente para se adequarem as leis de incentivos. O programa durou do final de 1964, quase 1965, até o final de 1966.

Mas restou a experiência de que carros de uso civil devem ser, no mínimo, acabados, ou até bonitos e completos. Veículos práticos e unicamente funcionais podem ficar no uso militar, servindo apenas como ferramenta de trabalho, e não como meio de transporte ou lazer. Parodiando a frase do sogro do nosso saudoso amigo Josias Silveira, dita para ele nos anos 60: “Um Jipe jamais se transformará em um Galaxie”. O “Jipe” é um veículo perfeito ao uso que se destina, e o “Galaxie” é um carro de requinte e luxo. Por isso, um nunca vai se transformar no outro, sendo que cada um guarda suas indiscutíveis qualidades.

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.