De Gurgel a Lamborghini, as semelhanças e diferenças

Quando um professor disse à João Augusto Gurgel que “Carros não se fabricam, compram-se!”, o aluno não acreditou e construiu desde carros em miniatura para crianças em dois modelos, até o Carajás, que chamaríamos hoje de SUV. Pouca gente, ainda viva, lembra-se de que o Gurgel original, um mini-buggy, foi, durante alguns anos, prêmio para um refrigerante chamado Cerejinha.

Criação original de Gurgel, o mini-buggy foi inclusive premiação de campanha de refrigerantes (Foto: Gurgel/divulgação

Mais tarde, ele lançou o segundo modelo infantil, o Karman-Ghia Gurgel que, por motivos óbvios, era baseado no modelo conversível. Sua iniciativa concretizou-se pelo fato de vir de uma família tradicional e com recursos, a exemplo do que aconteceu com Alberto Santos Dumont, como inventor, e tantos outros paulistas cuja fortuna migrou das fazendas de café para o meio urbano, abrangendo a indústria e a prestação de serviços públicos.

Mais tarde, João Augusto Gurgel criou também miniaturas de carros conhecidos, como Mustang ou Karmann-Ghia (Foto: Gurgel/divulgação)

Ferrucio Lamborghini, diferentemente, já vinha de uma indústria de tratores, que, mal ou bem, têm complexidade semelhante, quando não maior, que a de fabricar automóveis, mesmo que a escala seja menor. Aliás, ele parecia ter a consciência de que, em larga escala, jamais seria competitivo, daí ter escolhido a Ferrari como concorrente principal.

Ocorre que espírito empreendedor e talento em engenharia não são suficientes para uma operação parar em pé. É preciso construir um modelo de negócio que, como diria o banqueiro José Maria Witaker, não pode tomar mais de cinco minutos para ser entendido. O modelo de negócio contempla desde a cadeia de suprimentos à montante, até o sistema de distribuição à jusante, passando, é claro, pela manufatura.

Ferruccio Lamborghini já tinha know-how, mas só isso somado ao espírito investidor e talento em engenharia não são suficientes para a criação uma indústria automotiva (Foto: Lamborghini/divulgação)

Esta última, por sua vez, como diria Roger Coase, economista americano e Nobel de 1991, tem que respeitar a teoria dos contratos, ou seja, decidir, objetivamente, o que deve e o que não deve ser internalizado. Só então é que se passa a elaborar um plano de negócio que, por sua vez, tem duas vertentes.

A primeira e mais usual visa a apuração da taxa interna de retorno, do prazo de recuperação do capital investido, entre outros indicadores financeiros e não econômicos. A segunda vertente, conhecida como Goodwill, visa otimizar o valor dos ativos intangíveis, tal que o negócio em si, cotado a mercado, seja o maior possível. Se o primeiro método resultar em altos valores financeiros, o investidor enche o bolso mais rapidamente; no segundo enfoque, o que está em jogo é a capacidade de atrair investimentos.

O capital pode ser atraído de duas formas: pelo aumento do capital social via lançamento de ações, ou pelo lançamento de debêntures a serem negociados no mercado de dívida. Todas são decisões cuja mudança a posteriori custam caríssimo, portanto, sendo etapas impossíveis de se saltar durante o planejamento. Se a intenção for maximizar a taxa interna de retorno, há que se optar por o capitalista crer que seja possível encher os bolsos num prazo determinado, ficando a perpetuidade para cálculo em outro momento.

Se a intenção for maximizar o valor de mercado, o investidor terá a consciência de que não terá dinheiro, porém, ativos de que poderá ou não lançar mão em dada ocasião. No último caso, sabe-se, à priori, que a administração ficará em mãos profissionais e não nas suas, por mais que o nome do empreendimento seja seu sobrenome.

Os automóveis são e continuarão sendo os objetos mais complexos a serem produzidos larga escala, num feito admirável considerando-se as limitações do ser humano. A cadeia de suprimentos envolve, por mais que a indústria esteja concentrada, milhares de fornecedores dos mais variados portes. Ao mesmo tempo, a distribuição requer um estoque de peças de reposição que, por si só, constituem um negócio à parte, tendo os próprios fornecedores como concorrentes em potencial.

A produção de carros em larga escala continua sendo um feito e tanto para o ser humano (Foto: VW/divulgação)

Como Gurgel e Lamborghini já se foram, fica difícil entrevistá-los para saber se ambos tomaram suas decisões à luz de métodos científicos como os expostos acima. Lamborghini criou um nome que tinha valor de mercado, ou seja, ele parece ter apostado no Goodwill. Apesar de sua empresa quase ter ido à falência ainda no fim dos anos 1970, ele conseguiu vendê-la e o nome persiste forte até os dias de hoje.

Gurgel, por sua vez, criou uma dependência das compras estatais, que lhe tolheu a construção de uma marca, como fez o italiano. Quando se viu sem o “patrocínio” público, tentou migrar para a venda de veículos populares e capitalização via lançamento de ações, na busca de meios de financiamento para o projeto.

Uma das tentativas de João Gurgel driblar a falta de investimento público foi criando carros populares como o BR-800 e Supermini (Foto: Gurgel/divulgação)

Só que, por não ter criado um nome comercialmente valioso, não tinha como ser bem-sucedido, quer seja vendendo carros ou lançando ações. Os dois exemplos têm algo em comum: uma indústria de tamanha complexidade não tolera personalismo. Carros são fruto da mente de muitos, mesmo que alguns como Shelby e Chapman tenham seus nomes gravados no rol da fama.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.