Da direção hidráulica ao câmbio automático, mais sobre manias dos brasileiros


Foto de capa: reprodução/Quatro Rodas
Sempre falamos que Collor dizia a verdade, referindo-se a que que nossos carros eram verdadeiras carroças. Pomos a culpa no fechamento de mercado e, mais propriamente este autor, que a Comissão Especial de Informática (CEI), ao impedir que empresas estrangeiras mantivessem a produção local de eletrônicos digitais, condenava nossa indústria ao ostracismo mundial. Esquecemo-nos que nossas peculiaridades de mercado também provocavam um verdadeiro autoexílio. Foi este o assunto da matéria anterior, quando se abordou a ojeriza nacional por carros de quatro portas durante décadas.

As manias não se restringiam a elas. Iam muito além com práticas como retirar a correia de acionamento do condicionador de ar, até da direção hidráulica. Passei por situações bizarras por conta disso. De uma feita em que ficamos sem carro, minha esposa pegou uma VW Quantum 1985 da empresa para continuarmos rodando. Liguei o ar-condicionado, ouvi o relé, mas nada de esfriar. Abri o capô e me defrontei com a falta da correia em um carro com 5.000 km rodados. Passei numa oficina especializada e repus a correia.
Em vez de um agradecimento, houve uma reprovação por parte do motorista da empresa. Ele a tinha tirado alegando que ar-condicionado dá gripe. Curiosamente, isso era mais comuns entre as mulheres, por usarem muito menos roupas que os homens, creio eu. Uns dez anos depois, uma colabora nossa, que pilotava um Fiat Tipo, foi assaltada quando ia para o escritório de vidro aberto, sofrendo um corte no rosto por ter reagido ao assalto. Dali por diante, nunca mais desligou o ar-condicionado, mantendo as janelas fechadas. Foi a segurança que transformou o mercado de condicionadores de ar, deixando os carros mais parecidos com os do resto do mundo.

É inegável que os carburadores e os condicionadores de ar não tinham um relacionamento harmonioso. Tormento esse que só se resolveu com a extinção da CEI e a abertura das importações. Inicialmente, quando eram majoritariamente adaptados, era preciso regular a marcha-lenta com o dispositivo ligado, pois ele tomava aproximadamente 6 hp. Isso fazia com que o carro ficasse muito acelerado com o condicionador de ar desligado. A solução era usar um clicker de marcha-lenta, que distendia o batente para acelerar o carro sempre que o aparelho entrava em uso. Tremendo improviso.

O mesmo problema, aliás, acontecia com o câmbio automático para modelos com motores pequenos: alteravam profundamente a marcha-lenta quando se punha na posição “drive”. Também se resolveu isso com um clicker, mas não em todos os modelos. Quando se tratava dos V8 dos Ford Galaxie ou Landau, assim como os derivados do Dodge Dart, nem condicionador de ar, nem câmbio automático faziam a menor diferença na marcha-lenta, embora, no segundo caso, a regulagem devesse considerar o arrasto do veículo ao se tirar o pé do freio (o chamado “creeping”).
Sim, o fechamento de mercado, que se originara em 1976, prejudicou demais a nossa indústria, mas não foi só isso. No fim dos anos 1990, pedi a um cliente estrangeiro que guiasse o Ford Mondeo de nossa empresa. Ele tinha ar-condicionado, vidros e travas elétricas, direção hidráulica. Era um carro completo para a época. Só não tinha câmbio automático. Ele disse: “Bizar arrangement”, ou algo como “configuração bizarra” no nosso bom português.

Perguntei o motivo da estranheza e ele disse que, nos Estados Unidos, o câmbio automático vinha antes dos acessórios que aquele veículo continha. Era uma experiência que eu já tinha tido ao viver na América do Norte. Precisei explicar que, aqui, o câmbio automático, por muitos anos, fora considerado como uma adaptação para quem tivesse algum tipo de deficiência física. Poderia ser nos membros inferiores, ou mesmo nos superiores, caso seu movimento fosse limitado. Aí, concedia-se uma CNH restritiva a carros com câmbio automático.

Além disso, até 1969, ano do lançamento do Ford LTD, esses carros poderiam ser importados com isenção de impostos. Não resta a menor dúvida de que não ter o pedal de embreagem trazia a pecha de adaptação. Ainda no fim dos anos 2000, uma amiga minha, quando cotou que o filho adquirira um carro automático, disse: “Para que isso, com aquela perna boa…”. Por causa dessas idiossincrasias, somadas às restrições tecnológicas impostas pela política restritiva dos tempos da ditadura militar, a adoção do câmbio automático foi mais que lenta, morosa. Mas isso é uma outra história…