Carro: Sangue, suor e látex (parte 1/3)

Antes da II Guerra

“A Selva”, publicada em 1930, quase deu o prêmio Nobel de literatura ao português Ferreira de Castro (1898 – 1974). Nesse romance, ele descreve como os seringueiros cearenses eram explorados na Amazônia, de onde retiravam o látex. Embora, durante a época em que se passa a obra, o preço já estivesse caindo por conta do plantio da seringueira na Malásia, seu principal destino já eram os pneus. Os seringueiros embrenhavam-se na mata e a imensa maioria deles jamais saía. Ficavam para trás esposa e filhos, geralmente, no Ceará.

Dos anos 1920 para a frente, a indústria de automóveis tornou-se umbilicalmente dependente da borracha. Ela saiu dos pneus, inventados por John Boyd Dunlop (1840 – 1921) em 1888, graças ao processo de vulcanização, inventado por Charles Goodyear (1800 – 1860) em 1834, e foi para mais de duzentos itens na construção dos automóveis. Correias eram feitas de couro de peixe-boi, enquanto o couro bovino era matéria-prima para desde juntas e gaxetas até revestimento de cones de embreagem. Goodyear, aliás, não tem nada a ver com a empresa de mesmo nome, que a ele homenageou.

A ida da seringueira para a Malásia foi estratégica para a Inglaterra, que pretendia manter a hegemonia industrial, então ameaçada simultaneamente pelos Estados Unidos e Alemanha. Durante a I Guerra, que chegou ao Teerã, a Malásia ficou de fora e o fornecimento pelo Pacífico não parou, fazendo com que, apesar do conflito, o preço do látex natural continuasse caindo para os seringueiros da Amazônia.

Quanto mais o preço caía, maior era o grau de exploração dos seringueiros. Eles eram recrutados no sertão do Ceará com a promessa de fortuna imediata. Para alguns, até foi, enquanto a planta ainda era um monopólio brasileiro, embora algumas variedades se pudessem encontrar até no sul do México. O recrutador arcava com as despesas da viagem, a serem reembolsadas pelo trabalhador, mais ou menos como se fez, nos anos 1990, com os descendentes de japoneses que iam trabalhar na terra de seus ancestrais. A diferença é que, como os seringais ficavam longe de tudo, os extratores viam-se obrigados a comprarem tudo armazéns de seus empregadores, tal que a dívida só aumentava, tornando-os verdadeiros escravos, muitas vezes mortos a tiros ao tentar fugir. Quanto mais o preço caía, mais os empregadores aumentavam o preço dos víveres e a exploração campeava solta. Na Malásia, a situação não era muito melhor, mas o artifício da manipulação de dívidas não existia. É que as plantas eram cultivadas em linha e, como se tratasse de espécie importada, não havia doenças que afetassem significativamente a produção, ao contrário do que acontecia no Brasil, como Ford viria a descobrir nos anos 1930.

Entre 1927 e 1945, Henry Ford tentou cultivar a seringueira às margens do Tapajós, no Pará, numa área de 1,5 milhões de hectares. Enquanto o empresário americano pretendia ver-se livre do produto da Malásia, o governo brasileiro, bem como o paraense, queria retomar os dias de fartura do fim do século XIX. Não deu certo porque o mal das folhas, quando não matava a planta, tornava a produtividade pífia. É uma regra da agronomia moderna que não se plantam intensivamente espécies nativas porque as epidemias são inevitáveis. Além disso, os seringueiros estavam acostumados a caçar e pescar, não a comer hambúrguer, além de não serem habituados a serem mandados, especialmente, em outro idioma. Eles, enquanto estavam na floresta, caçavam, pescavam e dormiam quando bem entendiam e só viam o fiscal a cada quinze dias quando iam levar as bolas de látex para serem pesadas. Em Fordlândia, eram tratados como operários com horário para tudo, o que os desagradou, mesmo tendo alimentação e moradia dignas. A coisa chegou a ponto de, numa revolta, os capatazes terem de se refugiar na mata e forças federais intervirem para estabelecer a ordem.

Enquanto Ford fracassava no seu intento de ser autossuficiente em borracha, inicialmente destinada a pneus, a indústria de automóveis ficava consistentemente mais dependente do elastômero, agora, para encapar fios e vedar tubos e juntas. Mesmo sendo usada na indústria como um todo, especialmente na elétrica, a automobilística consumia 60% da produção mundial, pra a qual o Brasil concorria com 20% e as colônias britânicas e holandesas com 80%.

Em 1937, quando a II Guerra se avizinhava, duas coisas importantes aconteceram. A primeira foi o aperfeiçoamento da borracha sintética, a segunda foi o expansionismo japonês, que ameaçava a possessão britânicas na Ásia, mas isso é uma outra história.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.