Biodiesel de soja: loucura nem tão mansa

Há quem reclame de a área destinada à produção de álcool poder ser empregada para produzir comida. Por certo que têm razão. Hoje, um hectare de cana, que equivale a um quarteirão da Av. Paulista, produz, em média, 80 toneladas de cana. Cada tonelada de cana fornece, em condições ideais, 120l de etanol (Mas na média, não passa de 104 l). Assim, pode-se imaginar que tenhamos 8.320 l/hectare.

Em sentido figurado, usa-se um quarteirão da Av. Paulista para produzir um pouco menos que nove caixas d’água de álcool. É preciso considerar que, entre cultivo, corte, carga e transporte, também se usa diesel para movimentar tratores, caminhões, colhedeiras, carregadeiras, entre outros veículos. Segundo a Unica (União Nacional da Industria da Cana de Açúcar), são aproximadamente 210 l/hectare dentro da fazenda e outro tanto fora dela, somando 420 l para cada 8.320 l de álcool, ou seja, em torno de 5% do volume produzido. O Brasil destila, entre hidratado e anidro, 28 bilhões de litros, ou seja, somente para produzir álcool, lá se vão 1,44 bilhões de litros de óleo diesel, o que significa 1% do consumo total do país.

Colheita de soja (Foto: reprodução/NSC Total)

Parece um esforço insano. Imaginemos agora que se usam 4,2 milhões de hectares, que poderiam produzir feijão com arroz. Em relação aos 850 milhões de hectares que o país tem como território, parece pífio, não passando de 0,5%. Mesmo retirando as áreas a serem protegidas dos vários biomas com que conta o país, a parcela é insignificante, atingindo os 1,5%. Por que tanto texto sobre o álcool se o tema da matéria é biodiesel?

É que as críticas destinadas à distorção da ocupação territorial cabem a ele, de forma ainda mais contundente. Supondo-se que a quase totalidade da origem do combustível seja soja, pode-se estimar a área necessária a ser plantada para suprir a imposição da participação de 10% nos 144 bilhões de litros de diesel de petróleo que o Brasil consome anualmente. Sim, por conta da pandemia, segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo), em 2020, foram consumidos 7% a menos de diesel, perfazendo 136 l bilhões, o que permite inferir que o consumo normal do país tenda a voltar aos 144 l bilhões.

Durante a pandemia, o consumo de diesel diminuiu 7% no Brasil, mas a volta à normalidade já deve ocorrer em breve (Foto: reprodução/internet)

Supondo-se ainda que a produtividade da soja seja 3,6 T/hectare, com a premissa de 18% de óleo no grão, obtêm-se 648 kg de óleo por hectare. Ocorre que não é ele que entra nos motores, pois os resíduos colariam os bicos injetores. O combustível é um éster extraído por craqueamento, de forma semelhante a que se usa para obter diesel do petróleo, dessa vez, usando-se álcool como catalisador.

O processo chama-se transesterificação que, além de equalizar a viscosidade das várias matérias-primas que podem gerar biodiesel, permite que os motores funcionem sem necessidade de transformação. É um processo em que vinte por cento do peso perde-se como vapor e outros vinte por cento transformam-se em glicerol. Sobram 414,72 kg de biodiesel por hectare que, com a densidade de 0,88 oferecem 471,27 l por hectare. Isso indica que seriam necessários mais de trinta milhões de hectares para fazer face aos dez por cento de adição obrigatória.

Considerando-se que se usa combustível para plantar, colher, secar e transportar o grão, a área efetiva é oito vezes maior que a requerida para produzir álcool. Se forem tomados os números de produtividade por hectare, grosso modo, 500 l/hectare para o biodiesel de soja e 9.000 l/hectare para o álcool obtém-se um resultado dezoito vezes menor para o éster advindo da soja, ratificando a atividade como uma verdadeira loucura, amenizada pelo fato de que o farelo resultante da extração do óleo também tem seu valor.

Outra fonte de biodiesel é o sebo obtido nos frigoríficos. Depois de transeterificado, fornece 30% de biodiesel e 70% de glicerol, cujo excesso também é passivo ambiental. Mesmo a eficiência sendo discutível, a ideia tem seus adeptos porque torna um subproduto num coproduto.

Existem outras matérias-primas para biodiesel muito mais produtivas que a soja. O óleo de dendê e o pinhão manso são dois exemplos. Respectivamente, produzem 9.600 l/hectare e 5.800 l/hectare. Ambas são culturas perenes. Por não terem plantio anual como a soja, o consumo de diesel para a produção é bem menor, o que é uma economia de combustível extra. Não são usados por não serem commodities, consequentemente, não contarem com os mecanismos mundiais e nacionais de financiamento.

O pinhão-manso também pode servir de matéria prima para produzir o diesel (no caso, biodiesel) (Foto: reprodução/biomassabioenergia.com.br)

Commodities, por poderem contar com contratos futuros para garantir preço, bem como investimentos via fundos, permitem que o produtor tenha uma grande parte de seu risco mitigado e a lucratividade garantida, desde que não invente nada, sendo extremamente conservador. É o resultado do que os economistas chamam de financeirização, que padroniza o pensamento dos agentes econômicos, pondo a aversão ao risco à frente do anseio pela lucratividade. Isso põe a eficiência em segundo plano e tornando lentas todas as mudanças de longo prazo.

A loucura deixa de ser mansa na medida em que, argumentando-se buscar a proteção do planeta ao usar combustíveis renováveis, põe-se a camisa de força do mercado financeiro, cuja função deveria ser a de fomentar os avanços e não os constranger. Tudo isso se traduz em subsídios do Estado que penalizam todos os cidadãos. Repetindo, está mais para loucura do que para conservação.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.