A troca das duas pelas quatro portas: externalidade ou hecatombe mercadológica?

Os economistas chamam de externalidades todos os eventos alheios ao negócio, mas que os afetem significativamente. O exemplo mais usado pelos livros de introdução à Economia é a construção de uma estrada, que tanto se pode considerar positiva como negativa. Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, é um exemplo de externalidade negativa, porque a construção de uma nova estrada deixou o Motel Bates sem mercado.  

O Motel Bates, com um Ford Custom 300 estacionado na porta, como o da personagem do filme (Foto: Ipsingh/Wikipedia)

O seriado Rota 66, além de ter um merchandising do Chevrolet Corvette em pelo menos duas versões, é uma propaganda da própria estrada, mostrando que ela levava o progresso por onde passasse. Há casos em que as externalidades alteram também os hábitos de consumo, criando verdadeiras hecatombes mercadológicas. 

O Plano Cruzado foi um caso assim. Até então, os carros de quatro portas eram execrados como pesados, barulhentos e feios. Talvez, essa predileção, que beira o masoquismo, se devesse ao sucesso do VW Fusca que, para se tornar táxi, conhecido como mirim (pequeno e guarani), tinham o banco do carona retirado para facilitar o acesso dos passageiros. Eles eram limitados a dois e a tarifa, dada a restrição, era de dois terços da cobrada por um táxi comum.  

Talvez, a predileção dos brasileiros pelos carros de duas portas se deva ao sucesso do Fusca, que era usado inclusive como táxi (Foto: reprodução/Quatro Rodas)

Na verdade, aquele arranjo era até criminoso, pois os carros sequer tinham cintos de segurança. Muita gente se machucou seriamente em acidentes até triviais. Por sorte, os bancos começaram a ser repostos ainda nos anos 1970, quando a tarifa dos táxis Fusca se igualou à dos carros com quatro portas. 

Era uma situação complicada: esses Fusca táxi-mirim não tinham o banco do passageiro, e atrás sequer existia cinto de segurança. Muitos se feriram em acidentes com eles (Foto: reprodução/Quatro Rodas)

Alguns carros de passeio, como o Ford Corcel II e o Fiat 147 nunca tiveram variações com quatro portas. Outros, como o Chevrolet Opala, o Dodge Dart, o VW Santana, o Monza e o Corcel I, nasceram com quatro portas e migraram para modelos coupé por conta dessa idiossincrasia do nosso mercado. Outros foram lançados como coupé ou hatch e ganharam mais portas para cumprir contratos de exportação. São exemplos disso o VW TL, o VW Brasília, o VW Passat, o VW Voyage e o Chevrolet Chevette. 

Brasília e Chevette: dois projetos adaptados para quatro portas visando o mercado de exportação (Foto: reprodução/Quatro Rodas)

Exceto as vans como Chevrolet Amazonas e Veraneio, nenhuma perua de passageiros tinha quatro portas. Com duas portas eram a Chevrolet Caravan, a DKW Vemaget, a Willys Rural, a Ford Belina e até mesmo a luxuosa Scala. Peruas com quatro portas só se tornaram populares a partir da VW Quantum. 

A execração alcançava o valor de revenda, que chegava a ser a metade do equivalente de duas portas. Dava-se mais valor aos carros que tivessem as portas mais longas para facilitar o acesso ao banco traseiro. Isso seria impensável hoje, porque as portas daqueles carros eram tão grandes que se tornava impraticável centralizar o carro nas vagas de estacionamento. Se no centro da vaga, seria impossível abrir ambas as portas sem danificar os vizinhos. Então, o motorista parava o carro mais para a direita, tal que sua porta se abrisse o suficiente, e um eventual passageiro que passasse por cima do console para sair do carro. Para os idosos, era um verdadeiro inferno. 

As duas únicas portas dianteiras eram enormes, para facilitar o acesso ao banco traseiro, como no Ford Del Rey. Mas na hora de desembarcar do carro nas vagas apertadas… (Foto: reprodução/delreyghia.blogspot)

O Plano Cruzado de 1986 provocou uma mudança nos hábitos do Brasileiro. É que ele causou tamanho desabastecimento que os únicos carros disponíveis eram os de quatro portas revertidos de contratos não cumpridos de exportação, dado que o Dólar também foi congelado, tirando competitividade em âmbito internacional.  

Como não houvesse alternativa, que viessem os sedãs, mesmo que com “mais duas portas para fazer barulho” e suposto maior risco para as crianças que passariam a poder abri-las com o carro em movimento, entre outras lendas urbanas. Nem mesmo a desconfianças nas maçanetas embutidas e travas de segurança impediram os sedãs de saírem das concessionárias. Foi um verdadeiro divisor de águas no mercado brasileiro de automóveis. 

A partir do final dos anos 80, os carros de quatro portas começaram a se tornar mais populares (Foto: Ford/divulgação)

Claro que isso só surtiu efeito aos poucos, afinal, havia algumas dezenas de milhões de carros metidos a coupé rodando pelo Brasil afora, talvez adentro. Em 2017, foi produzido o último carro de duas portas no Brasil, o VW Gol, enquanto a carroceria de duas portas em sedans nacionais saiu de linha ainda em 1996, no VW Santana. Até mesmo os esportivos ganharam duas portas traseiras, apesar de se buscar uma aparência mais apimentada. Caso de VW Polo GTS, Renault Sandero RS e os Pulse e Fastback Abarth. 

Resumindo, foi preciso uma hecatombe como o Plano Cruzado para dar o mínimo de racionalidade ao nosso consumidor. Há um longo caminho pela frente, mas isso é uma outra história. 

Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.