A indústria de automóveis numa visão filosófica

Bruno Latour, filósofo francês, escreveu um livro chamado “Jamais Fomos Modernos”. Trata-se de uma obra que questiona contundentemente o conceito de modernidade. Afinal, o que é ser moderno? Enquanto a sociedade ocidental irradia a ideia de que cria máquinas que nos levem a qualquer lugar sem esforço, seja rodando, seja voando; automatizar processos, ou ainda criar novos produtos e novos hábitos é ser moderno, para algumas sociedades, que não anseiam por essas mudanças, a modernidade pode ter significado totalmente diferente ou, talvez, nenhum significado.

Para Latour, a modernidade seria representada por um novo modo de pensar e isso simplesmente não aconteceu ou, se aconteceu, em nada alterou a natureza humana nem a forma com que se relaciona com o meio em que vive.

Já Belchior, em sua canção “Como Nossos Pais”, questiona a ideia do “novo”. O mesmo autor, em “Roupa Colorida”, põe em causa a correlação entre a modernidade e a juventude: “… E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo e precisamos todos rejuvenescer”. Talvez seja essa a canção que mais bem exprima as dificuldades mercadológicas que envolvem a indústria de automóveis.

Os anos que sucederam a II Guerra foram marcados pela alta procura no mercado de carros novos (Foto: Ford/divulgação)

Sim, a aura de modernidade que envolvia o automóvel ficou no passado. No fim dos anos 2000 e início dos 2010, faziam-se filas nas lojas de celulares para comprar um novo modelo de iPhone, mais ou menos como se fazia nos anos que sucederam a II Guerra para comprar um novo modelo de automóvel. Hoje, o lançamento de um novo iPhone é quase que notícia de rodapé e em espaços especializados na mídia digital.

É a mais pura tradução de que “o que era novo, hoje, é antigo”. Mas o que impressiona é como a indústria que faz os produtos mais complexos em larga escala, o automóvel, pode ter perdido o posto de inovadora, de vanguarda tecnológica. De fato, hoje ela incorpora tecnologias destinadas a outros produtos simplesmente embarcando-as, em vez de irradiar novas ideias ao restante da indústria.

Hoje, a indústria apenas embarca as tecnologias disponíveis mundialmente dentro dos automóveis (Foto: Chevrolet/divulgação)

Será que a transição do carro à combustão para o elétrico será capaz de restituir a modernidade perdida? A resposta tem dois âmbitos: Filosófico e tecnológico. Filosoficamente, é um peremptório “não”. O abandono dos motores à combustão em prol dos elétricos não muda a utilidade do bem, que é o de ir e vir com velocidade e segurança.

Mesmo que se alterem sistemas de freio, de direção e suspensão para incorporar o novo método de propulsão, que, em âmbito tecnológico podem trazer modernidade ao produto, a sociedade pode, simplesmente, não estar olhando para esse aparato com a mesma atenção de décadas atrás.

Quantos, entre os mais jovens, estão preocupados com os sistemas destinados ao funcionamento do veículo? Provavelmente, o que mais lhes chame a atenção é poder continuar jogando o mesmo game com que estavam entretidos quando entraram no carro. Ter telas para projeção do smartphone contam muito mais do que a aceleração ou a capacidade de fazer curvas em alta velocidade.

Telas multifuncionais valem mais que o desempenho ou capacidades do carro, vide a Tesla com sua multimídia que permite jogar diversos games dentro do próprio carro (Foto: Tesla/divulgação)

Todas essas alterações, provavelmente, simplificadoras dos sistemas produtivos, redundando em muitas demissões, afetam muito mais o bolso da indústria do que a percepção do mercado acerca dos automóveis em si.

Não há de ser a concorrência dos drones (“zangão” em Inglês) ou dos veículos “stol” (“short take off and landing”) que trarão a modernidade perdida. É que os drones, mesmo que usados para transporte pessoal, não passam de automação de processos já dominados pelo ser humano. Os stol, por sua vez, acabariam por ter regras próprias e não teriam disponibilidade massificada como aconteceu com os automóveis na primeira metade do século passado, quando guiar tornou-se simples e acessível à enorme maioria da população.

Apesar de tecnológicos, os drones, em especial os que transportam humanos, são apenas formas de automação de alguns processos já dominados (Foto: eHang/divulgação)

O grande desafio da gerência de produtos da indústria de automóveis é enorme, talvez, só superado pelo pessoal de marketing para dar a ideia de que “uma nova mudança” vai acontecer, parafraseando o mesmo Belchior. Quem sabe, o próximo passo será o teletransporte, que nos convidará a sentar, fisicamente, num café de Paris, a minutos de distância. Que a indústria de automóveis seja vitrina. Ela parece ter sido posta numa rua com muito menos movimento, talvez, num bairro chique mas envelhecido. É, “precisamos todos rejuvenescer”.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.