A financeirização e a prestação de serviços automotivos

Talvez não haja setor mais dependente do mercado financeiro que o de automóveis. Até o Plano Real, a oferta de crédito era regulada pelo número de parcelas. Seja para mitigar a alta de preços, seja para fomentar as exportações, variava-se o prazo de financiamento alterando-se o número de consumidores aptos a arcar com as prestações.

Houve tempos em que máximo foi de somente seis meses. Em média, eram vinte e quatro e soltavam-se rojões nas agências quando dois anos de prazo eram ultrapassados. A preocupação maior era com a balança comercial, tão precisada de superávit para pagar juros da dívida externa. Restringia-se o consumo interno, enquanto a indústria tinha de manter-se ativa por conta dos custos fixos e equipamentos impossíveis de se desligar. O destino era o exterior a preços vis.

Financiamentos de carros com mais de 24 parcelas eram raros (Foto: reprodução/Hyundai)

Com o Plano Real e a internalização da dívida, o país livrou-se da pressão sobre os pagamentos ao exterior e os prazos passaram a ser imitados pelo mercado, chegando, em alguns casos, a oitenta meses, o que aumentou a dependência do mercado financeiro. Nele se incluem os bancos, as empresas de leasing e os fundos de investimento em crédito direto ao consumidor.

Os fundos e o sistema bancário desenvolveram uma simbiose capaz de não restringir novos fundos, ao mesmo tempo em que eles não representassem risco para a lucratividade dos bancos. Estes deixaram de ser uma loja de dinheiro para ser uma vitrine para os fundos, usando sua capilaridade tanto para capitar como para emprestar.

Os fundos não passam de grupos de investidores cujas cotas para formar uma massa capaz de financiar algo ou alguém de forma muito menos burocrática e regulada que os próprios bancos. É por isso que se chama de crédito não bancário. Geralmente, eles são compostos por cotistas seniores, hora formadores do fundo, hora detentores de grandes parcelas, que abrem mão de parte da rentabilidade em troca de segurança maior, deixando para os cotistas subordinados o risco de negócio, em troca de uma rentabilidade maior.

É o administrador do fundo que lida com os papéis, controlando o saldo de cada cotista, zelando para que tudo esteja corretamente registrado, bem como pela reposição de títulos vencidos e quitados por outros a vencer, perpetuando o fundo como instituição. Cabe aos consultores do fundo operar os negócios que garantem o rendimento das cotas. É o especialista nas atividades que o compõem e que o faz render. Essa pincelada é o bastante para entender o de que se falará a diante.

Os economistas chamam esse mecanismo todo de financeirização, pois a economia passa a fluir via oferta de crédito e o mecanismo tende a abranger todos os ramos da atividade humana num ciclo bem claro e de âmbito mundial. Os empresários, seja por conta da sucessão, seja por ansiarem diversificar seus investimentos, minimizando riscos, passam de empreendedores a rentistas. Vendem suas empresas, ou mesmo as transformam em franquias. Um belo dia, nem mesmo esse risco lhes satisfaz, então passam tudo à administração de um fundo em troca de cotas, de que viverão daí por diante.

É de se esperar que isso se alastre pelos serviços e pelo comércio de autopeças, o que já se começou a observar. Lojas e oficinas estão-se tornando franquias com centenas de filiais espalhadas pelo território nacional. As lojas passam a contar com centros de distribuição, muitas vezes terceirizados, capazes de facilitar a importação de componentes, especialmente os compartilhados entre modelos de mesma plataforma.

Os centros automotivos entram para o time das empresas franqueadas (Foto: reprodução/internet)

Isso garante preço competitivo, além de fomentar a produção de genéricos, garantindo-se a capilaridade da distribuição. Já as oficinas apregoam uma seriamente discutível padronização da qualidade dos reparos que pode não passar da aparência do estabelecimento. É que reparos, especialmente os mais complexos, dependem da experiência do profissional, e, nesse caso, cada um tem a sua.

Já há até redes associativas de alcance mundial que abarcam o fornecimento de componentes e a prestação de serviços de reparo, só não atingindo o abastecimento, que é extremamente regulado pelo Estado, sempre de olho na arrecadação fiscal. Este último, por ação do governo com sucesso nada garantido, tenta trilhar o caminho oposto com os postos de bandeira branca e a venda direta de etanol a partir das destilarias.

O próximo passo é a assunção do setor por um ou mais fundos, ou mesmo por um megagrupo que faça a ponte com o mercado financeiro, como acontece com a Burger King, hoje pertencente ao Grupo InBev, no Brasil conhecido como Ambev.

Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.