A Faria Lima e a queda das pontes

Foto de capa: Maurício Marinho/REUTERS

No dia 22 de dezembro, a Ponte Juscelino Kubitschek, sobre o rio Tocantins, ruiu enquanto era filmada por um vereador da região. Desde 1960, aquela obra de arte ligava os estados do Tocantins e do Maranhão. Eu mesmo passei por ela duas vezes vinte anos atrás.  

Ponte Juscelino Kubitschek, também conhecida como Ponte do Estreito: desabamento no último dia 22, 11 mortos até o momento e outras 6 pessoas desaparecidas (Foto: Corpo de Bombeiros de Tocantins)

Já houve outras denúncias nas mãos do DNIT desde 2019 e nada aconteceu. Ainda há desaparecidos e a probabilidade de que estejam vivos decai a cada dia de busca. A real causa do desabamento é que precisa ser desvendada. Ela está muito longe dali, mas tem endereço fixo e conhecido: Av. Faria Lima. 

Há pelo menos cinco anos, o DNIT recebia denúncias do mau estado de conservação da ponte, mas há relatos de populares há quase uma década (Foto: Carlos Brandão/Governo do Maranhão)

O plano Real, que muitos encaram como a redenção da moeda brasileira, trouxe efeitos colaterais, entre eles a queda da ponte em questão, por mais desconexo que possa parecer. É que o plano assentou-se num tripé: privatizações, âncora cambial e âncora verde. As privatizações deveriam suprir o Tesouro de recursos, reduzindo a dependência do constante lançamento de papéis da dívida pública para financiar o Estado. Não foi bem isso o que aconteceu e as privatizações acabaram financiadas, em grande parte, pelo BNDES. 

Sim, o plano Real pode ser associado à queda da ponte do Estreito (Foto: Filipe Castilho/Sul21)

A âncora verde foi uma aposta na estabilidade dos preços agrícolas como mitigador da inflação. Ela estava ligada umbilicalmente à âncora cambial, cuja função era controlar o preço do dólar para reduzir a sua influência sobre os preços internos. A âncora cambial visava, via altíssimas taxas de juros, a atrair dólares para manter as reservas e, ao longo do tempo, internalizar a dívida externa, que tinha sido a grande vilã da década anterior. 

Âncora verde…âncora cambial…nos anos seguintes, a inflação manteve-se controlada (Foto: reprodução/Freepik)

Nos anos seguintes, apesar de engasgos que não interessam no momento, a inflação manteve-se sob controle. A taxa de juros chegou, em alguns momentos, a 23% ao ano, sem que o Estado tivesse caixa para honrar esse ônus. Foi a passagem do desenvolvimentismo para o rentismo desenfreado. Empresas foram vendidas e os industriais tornaram-se rentistas com poder político para influir nas decisões do Banco Central. Isso tornou permanente o que deveria ser passageiro. Foi assim que nasceu a Faria Lima em seu sentido conotativo. 

No seu sentido conotativo, foi mais ou menos aí que nasceu a Faria Lima (Foto: reprodução/Getty Images)

A internalização da dívida externa e a taxa estratosférica de juros tornaram os gastos estatais com financiamento numa bola de neve. Essas despesas cresceram muito mais rapidamente que a receita tributária e os déficits tornaram-se inevitáveis.  Criou-se então um dilema: ou se baixava a taxa de juros e mantinham-se os gastos públicos, ou mantinha-se a taxa de juros e reduziam-se os gastos. Não é preciso ser um gênio para adivinhar qual decisão foi tomada. Começou pela Lei complementar 101, conhecida como de Responsabilidade Fiscal. Ela obrigava um superávit primário de 3% do PIB, ou seja, o Estado teria de fazer com o que pagar os juros. 

Ora, como os impostos representam 36% do PIB e o superávit teria de ser o Estado teria de reservar, para pagamento de juros, 8,33% do que recebia em impostos. Mesmo assim, a dívida continuava crescendo porque os juros representavam 8% do PIB, cinco pontos percentuais mais do que o superávit de 3%. Isso já representou um golpe na capacidade de o governo investir e a construção de novas estradas tornou-se serviço de tapa-buracos já existente. 

Ao invés de investirem em mais trechos asfaltados, novos, passou a preferir-se consertar os já existentes: as famosas operações tapa-buraco (Foto: reprodução/internet)

O segundo golpe na capacidade de o estado investir veio em 2016 com o a Emenda 95, conhecida como Teto de Gastos, ou a PEC do Fim do Mundo, que limitava os gastos públicos ao nível de 2016. Os únicos gastos preservados seriam os juros devidos à Faria Lima, condenando o aparelho público a esboroar-se, visto que não haveria recursos para a construção de um novo quilômetro de estradas no país.  

Em três décadas, até 1990, mais que sextuplicamos nossos quilômetros asfaltados. Dos anos 90 até hoje, 2024, expandimos sete vezes menos (Foto: Ecovias/divulgação)

Prova disso é que, somente em quilômetros asfaltados, o Brasil, que tinha passado de 8.000 km para 50.000 km entre 1960 e 1990, só teve 6.000 km asfaltados nos últimos trinta anos. Isso denota que os impostos pagos só serviram para realimentar a dívida pública e encher os bolsos dos rentistas da Faria Lima. 

Mesmo com transformação do teto de gastos em arcabouço fiscal, o colapso dos serviços públicos não só e inevitável como eminente. Num país do tamanho do Brasil, as construções são igualmente gigantescas e ciclópicos são os gastos para manter toda essa infraestrutura. Não se podem abandonar equipamentos como a Ponte Rio-Niterói, ou estradas com a complexidade de uma Rodovia dos Imigrantes, com suas pistas suspensas a mais de 80 m. A manutenção e a modernização são imprescindíveis para manter vivo o país. 

Equipamentos importantíssimos como a Ponte Rio-Niterói, por exemplo, não podem ser abandonados e necessitam de modernizações (Foto: EcoPonte/divulgação)

Quando 88% de nossas rodovias foram construídas, o cálculo considerava material rodante de até 45 toneladas. Hoje, não é raro encontrarem-se treminhões e bitrens atingindo 90t, de sorte que o que temos já não serve e está abandonado por conta dos juros que, há trinta anos, realimentam uma dívida que não se originou em investimentos públicos, mas numa política econômica num período determinado. 

Outro fato importante: diversas rodovias foram construídas prevendo veículos de até 45 toneladas. Hoje, não é difícil ver caminhões bi-trem ou treminhões com o dobro desse peso (Foto: Facchini/divulgação)

Aqui, um vídeo brilhante. Não são somente as pontes que começam a ruir como cartas de baralho, é o país.  

A Coluna Carro Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e não necessariamente reflete a opinião do Carros&Garagem. 

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.